Processos da Inquisição que mostram o dia-a-dia na Colônia podem tornar bem mais atraente o ensino da História
Angelo Adriano Faria de Assis*
A História é considerada matéria chata e desinteressante para muitos alunos. Este pesadelo que atormenta os professores pode ser superado, ou, pelo menos, minimizado, com a utilização em sala de aula de fontes pouco exploradas. A documentação produzida pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição relativa ao Brasil é um material valiosíssimo, com detalhes sobre o dia-a-dia da vida nas vilas e nos engenhos coloniais, sobre os acontecimentos políticos e seus principais personagens, as guerras de conquista e pacificação, a produção econômica de subsistência e de exportação. Aparecem também as disputas militares e as entradas pelo sertão em busca de metais ou de indígenas e negros fugidos, as festas religiosas e as cerimônias fúnebres, as questões de fé e o sem-número de heresias praticadas, além dos registros sobre a catequização dos nativos e escravos. Os representantes da Inquisição fizeram meticulosas descrições da vida na Colônia, e muitas vezes deixaram transparecer o seu espanto diante do que ocorria.
Apesar dos avanços nas pesquisas e da publicação de vários livros sobre o tema nos últimos anos, falar da Inquisição em sala de aula ainda causa surpresa. Os professores que utilizam este tipo de documentação constantemente se deparam com o assombro dos alunos ao descobrirem a presença do Tribunal do Santo Ofício e a existência de acusações e processos inquisitoriais envolvendo habitantes do Brasil colonial.
Perde o aluno, mas também o professor, ao deixar de lado fontes riquíssimas, que poderiam tornar mais atraente uma disciplina que ainda carrega a densa pecha de que mais se decora do que se aprende. Muito melhor seria usar estes documentos em sala de aula para incentivar o gosto pelo estudo do Brasil dos primeiros séculos.
A Inquisição surgiu no século XIII com o papa Gregório IX (1170-1241), que contou com o apoio das ordens Franciscana e Dominicana para combater os cátaros ou albingenses, difusores de doutrinas consideradas falsas pela Igreja [as heresias], atuantes na região de Albi, sul da França. Após a perseguição aos hereges e o extermínio de comunidades inteiras, o Tribunal foi extinto. Voltou a funcionar no início da Idade Moderna (século XV), quando a Igreja se viu novamente ameaçada pelo problema das heresias. O Tribunal exercia vigilância sobre a moral dos fiéis e censurava a produção cultural e científica, visando conter inovações contrárias ao dogma da Igreja. Caso os inquisidores julgassem que o réu não demonstrava arrependimento em relação ao crime de que era acusado ou fosse reincidente, ele poderia sofrer condenações as mais variadas, que iam desde a obrigação de fazer orações e penitências até ser entregue ao poder secular, que podia condená-lo a morrer na fogueira, em cerimônias públicas denominadas autos-de-fé. A península ibérica, envolvida com os problemas da reconquista do território ocupado pelos árabes e do monopólio da fé, foi um dos palcos para o ressurgimento da Inquisição.
O Tribunal do Santo Ofício foi instaurado em Portugal no ano de 1536. Havia três sedes: Coimbra, Évora e Lisboa, esta última responsável pelos domínios de além-mar, entre eles o Brasil. O objetivo era zelar pela pureza da fé católica, reprimindo comportamentos considerados heréticos. Os cristãos-novos – judeus batizados, convertidos ao catolicismo por decreto em fins do século XV –, e seus descendentes eram considerados a principal ameaça ao catolicismo em Portugal, acusados de manter as práticas religiosas judaicas em segredo (crime de judaizar). Em conseqüência, se transformariam nas principais vítimas do Santo Ofício português.
Sobre a presença da Inquisição no Brasil, foram publicados documentos referentes às visitações de 1591-95 (Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba), 1618-21 (Salvador e Recôncavo baiano) e 1763-69 (Grão-Pará). Infelizmente, a maioria destas publicações está fora de catálogo e só é encontrada em bibliotecas. São relatos que impressionam o leitor pela variedade de assuntos e riqueza de informações, por se tratar de documentação pautada pelo segredo, visto que os inquisidores não esperavam que fosse um dia tornar-se pública.
São histórias extraordinárias, que despertam o maior interesse, relatadas nas entrelinhas dos testemunhos feitos à mesa do Santo Ofício. Embora produzidos com fim religioso, estes documentos permitem enxergar muito além das questões da fé: a estruturação econômica, política, cultural e social das regiões visitadas, num leque que se estende das formas de moradia, alimentação, festas e confraternização dos denunciados, confidentes e acusadores; intrigas na disputa pelo poder local; brigas entre famílias, passando por feitiços para arrumar casamento ou curar doenças; registros de concubinatos; comportamentos sexuais; vinganças pessoais; zombarias; hábitos alimentares; assuntos do cotidiano e mais um sem-número de práticas e costumes presenciados na Colônia.
Comer, amar e ler no cotidiano: vejamos, em breves exemplos, a variedade de dados que podem ser extraídos de alguns depoimentos da primeira visitação, recuperando parte da biografia de alguns dos inúmeros acusados e confessantes presentes nas páginas das fontes inquisitoriais.
Em Pernambuco, Beatriz Mendes foi acusada de cozinhar ao modo judaico: “toda a carne de carneiro ou de vaca que vinha do açougue para comer, lhe tirava primeiro o sebo e adubava na panela com azeite, misturando grãos com seus adubos na panela”, e preparava galinha “com azeite e com uma pequenina de cebola”.
Na Bahia, Maria da Costa denunciou Francisco Feio, “mulato casado nesta cidade com uma negra”, de ser “casado duas vezes”, ou seja, da prática de bigamia. Já Nuno Fernandes deixou pistas sobre os livros, mesmo os proibidos, que se liam na Colônia: “haverá quatro ou cinco anos que, sabendo ele que o livro Diana era defeso [proibido], ele, contudo, leu por ele muitas vezes, e tem Metamorfoses, de Ovídio, em linguagem, não sabendo ser defeso. Confessou mais que, sabendo que Eufrozina é defeso, leu por ele uma vez”.
Em sala de aula, o professor deve seguir o mesmo cuidado do historiador em suas pesquisas. A responsabilidade, como mediador deste diálogo entre aluno e fonte documental, deve ser apurada, orientando nas indagações ao documento, auxiliando na construção de conceitos, fazendo criticar as fontes, entendendo a época, os motivos e por quem foram produzidas, evitando generalizações. O trabalho com este material permitirá um contato mais direto com a História e uma aula mais dinâmica e participativa. Em pequenos grupos, os alunos podem ser incentivados a debater as diferenças entre sua época e o momento em que foram produzidos os documentos: a grafia diferenciada de algumas palavras, termos e expressões que tiveram seu significado modificado ao longo do tempo, mudanças nos hábitos cotidianos, e até mesmo noções de paleografia, desenvolvendo nos alunos a habilidade da leitura de textos antigos, caso o professor consiga levar uma imagem do documento original manuscrito, mostrando as transformações no próprio processo e materiais utilizados para a escrita, entre outras tantas possibilidades. Como suporte, pode ainda contar com uma imensa quantidade de iconografias e trechos de documentos inquisitoriais ou fontes complementares, encontrados sem maiores dificuldades na Internet, além de alguns filmes e documentários sobre o assunto.
Mas tão importante quanto o material utilizado pelos professores em suas aulas, é bom repetir, deve ser o cuidado no manejo de quaisquer tipos de fontes: é preciso compreendê-las dentro de sua realidade, sem juízo de valor. Assim, estes documentos podem ser um complemento ao livro didático, permitindo aos alunos perceber como a história do Brasil colônia precisa ser contada e recontada a partir de várias fontes e olhares, e de modo bem mais agradável do que a antiga prática da “decoreba”.
*Angelo Adriano Faria de Assis é professor da Universidade Federal de Viçosa e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, onde defendeu a tese “Macabéias da Colônia: criptojudaísmo feminino na Bahia - Séculos XVI-XVII” (2004).
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